sábado, 17 de março de 2012

Misteriosa Sabedoria



Não deve ter escapado a ninguém que o mercado de livros há algum tempo vem sendo invadido pelo que se poderia chamar de thrillers (romance de aventura) religiosos. 

Há certo fascínio por conhecimentos ocultos, mensagens secretas, grupos e forças ocultas, neles existem invariavelmente códigos enigmáticos e sociedades secretas em jogo. Símbolos impenetráveis de um passado longínquo dão indicações corretas, e por fim comunidades misteriosas revelam seus últimos segredos. Além do mais, deparamo-nos com vestígios de manuscritos esquecidos e relíquias desaparecidas, tais como a Arca e o Graal. 

Vencidos eram os pretensos heréticos, isto é, os gnósticos, os maniqueus, os bogomilos, os cátaros e tantos outros. 

E hoje, embora nossa visão da história encontre-se totalmente deformada, os aspectos da verdade são progressivamente trazidos à luz. 

Assim, no decorrer de nossas leituras, a verdade oculta pode ser-nos transmitida, e o enredo de um thriller revelar-nos o objetivo de nossa
própria busca interior.

Já há tempos essa expectativa havia sido despertada por muitas obras esotéricas populares. No gênero thriller, o desejo de sabedoria original e a revelação dos últimos mistérios é introduzido muito habilmente.

Nesses thrillers é sempre mantida a ilusão de que podemos encontrar concretamente a verdade e fazer que ela se manifeste pura e simplesmente, por exemplo, como resultado de uma pesquisa científica ou de uma investigação jornalística. 

Mas o verdadeiro mistério interior não poderia também deixar de
escapar a todas as pesquisas feitas no mundo exterior. 

Visto que nesse caminho somente se encontra o envoltório das formas cristalizadas que encobrem a verdade, ou seja, as formas densas, jamais será possível encontrar nele a verdade vivente, pois, embora ela venha a este mundo, ela não é deste mundo, e por isso não pode ser encontrada aqui.

“Acaso não é ilusório vos afagar sob um reflexo caricatural da luz? Acaso não é necessário retornar ao Tao enquanto ainda é possível?” A confusão é que, naturalmente, em todas essas descobertas e revelações algo da verdade mesma, da Luz única, é refletido.

Está claro que nesses thrillers modernos, como em todos os mitos e lendas antigas, se ocultam muitos reflexos da verdadeira busca espiritual, porém de modo inconsciente, sob forma alegórica, sem que o autor conheça
toda a sua extensão nem que ele próprio viva essa busca conscientemente.

Diferente de um livro cativante que trata de um crime fictício e outros envolvimentos, deu-se, no início dos tempos, no plano espiritual,
um incidente que envolveu toda a humanidade. 

Esse incidente deve ser anulado porque o homem, ao tornar-se consciente,
elimina as causas do tempo, do sofrimento e também da obrigação de “ganhar o pão com o suor do seu rosto”. 

Esse incidente sobre o qual não podemos falar senão de maneira
aproximativa é qualificado de “queda”.

O homem original, nascido da unidade original divina, em sua temeridade evocou, um dia, forças adversas que o desviaram de sua verdadeira evolução.

Ora, no caminho do restabelecimento da glória do homem divino e do ingresso final no mistério divino, o homem deve afastar corajosamente inúmeros obstáculos. 

Sua vida será julgada de acordo com seu engajamento pessoal, sua inteligência crescente e seu profundo anseio pela Verdade. 

Tudo se desenvolve diante de um cenário: a dura realidade da vida, onde os acontecimentos externos apresentam um símbolo do que se desenvolve no plano interior. 

Como num thriller, os mosaicos giram na cabeça da pessoa que segue esse caminho, enquanto as numerosas peças do quebra-cabeça se dispõem
progressivamente uma ao lado da outra para revelar a verdade. 

Desse modo, a busca interior tem um final feliz, um “bom fim”, segundo a expressão cátara. No meio da grande confusão o buscador consegue, por fim, encontrar muitos pontos de referência.

Muitos desses livros referem-se incidentalmente a fatos históricos, mais concretamente a um tesouro escondido, aos templários, a Salomão, ou então aos cátaros etc.

Neles se busca um tesouro que pode ser encontrado em lugares lendários como Glastonbury, Rosslyn, Rennes le Château. 

Às vezes o tesouro é material, e tem-se em vista o túmulo de Jesus, ou então sai-se em busca de seus ossos. 

É bastante comum atualmente basear o enredo de um thriller na idéia de que a posteridade de Jesus, considerado como personagem histórico, ter-se-ia perpetuado até nossos dias, em uma dinastia real, por exemplo, que seria designada como a família do Graal, os merovingios. 

Inevitavelmente, a figura de Maria Madalena é mencionada como sendo
a companheira do Mestre Jesus, o Cristo ou sua legítima esposa, hipóteses geralmente ilustradas por referências bíblicas apropriadas e por lendas da Idade Média. 

Numa leitura feminista da Bíblia, Maria Madalena serve de figura de
proa que se propõe corrigir a parcialidade patriarcal desse livro, de modo que freqüentemente Madalena é a personagem central nas modernas buscas do Graal, que para mudar, já não é chamado “Santo Graal”, mas
“Sangreal”, ou seja, sangue real. 

A revelação desse segredo remete-nos aos evangelhos gnósticos como a Pistis Sophia e O evangelho de Maria, sobretudo para mostrar que
Maria Madalena era a bem-amada do Mestre Jesus, o Cristo.

Chegamos, assim, a um terreno delicado e não menos perigoso caso não tenhamos nenhuma idéia do processo que se desenvolve dentro de nós e à nossa volta. 

Há uma profunda sabedoria que ensina que a união do homem e da mulher pode não apenas ser um símbolo, mas a chave efetiva de uma idéia espiritual superior. Em particular o casamento, a união de Jesus e Maria Madalena, deve realizar-se necessariamente a fim de conduzir toda a humanidade aos mistérios libertadores, o que está em flagrante contradição com os ensinamentos da Igreja de Roma. 

Este é o saber secreto transmitido de geração a geração por fraternidades secretas.

Nas escolas de mistérios, pelo contrário, o casamento sagrado representa a união alquímica que todo ser humano deve realizar interiormente: a união de seus aspectos masculino e feminino, anulando assim toda idéia de separação. 

O Espírito divino e a alma humana devem unir-se conforme a descrição
profunda dada por Johann Valentin Andreæ em sua obra prima "As núpcias alquímicas de Christian Rosenkreuz".

Segundo O Evangelho de Maria, Maria Madalena é a “companheira de Jesus”, isto é, a nova alma que, libertada das realidades transitórias daqui de baixo, vive em união íntima com o Espírito, seu esposo, personificado
por Jesus. 

Raramente os thrillers religiosos transmitem a compreensão de que o
segredo do Graal, o casamento sagrado do novo ser humano, não pode se realizar no plano evolutivo da natureza comum. 

De fato, essa realização supõe o despertar interior da natureza divina do homem, o que não é possível se os impulsos do sangue, fatores de extremado egocentrismo humano, não tiverem sido totalmente neutralizados, deixando assim de causar qualquer interferência.

Essa é a diferença crucial da idéia freqüentemente evocada de uma união carnal entre Jesus e Maria, que teria dado origem a uma pretensa descendência real que se perpetuaria até nossos dias.

Nos mistérios cristãos libertadores, o “velho homem”, cada um de nós, começa morrendo na cruz deste mundo antes de ressuscitar como novo homem. 

Essa verdade gnóstica crucial transforma-se em falsa verdade histórica quando fala ao homem de nosso tempo e ele permanece surdo, ou quer permanecer surdo, à exigência incontornável de se transformar e se entrega às suas fantasias.

Dizemo-lo sem rodeios: não é possível participar desse mistério sem estar preparado para renunciar a si mesmo e a todas as ilusões. 

Não existe nenhuma linhagem real que conceda a realeza interior através do nascimento. 

O inverso é a verdade: somente o renascimento interior dá a realeza do Espírito.

E neste caso cada ser humano torna-se, ele mesmo, um rei-sacerdote, o herdeiro do Graal. É unicamente dessa maneira que a misteriosa sabedoria se revela.

“O mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. E se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo, se é certo que com ele padecemos,para que também com ele sejamos glorificados.” (Rm 8:16-17).

O mistério do Graal dormita nas profundezas inconscientes da memória coletiva da humanidade. Ele está no coração da sabedoria que se oculta nas lendas do Graal, histórias romantizadas e thrillers religiosos atuais.

Se percebermos isso e liberarmos em nós a sabedoria oculta, compreenderemos a grande renovação espiritual à qual assistimos atualmente, e como ela se expressa por numerosas criações culturais suscetíveis de tocar os buscadores, embora em forma banalizada, deformada e profanada. 

Mas, ali onde muitos ainda têm necessidade de códigos e de chaves quiméricas, o verdadeiro buscador do Graal perde a ilusão de poder alcançar a realidade no plano exterior. 

Ele está consciente de que o que lhe é apresentado de modo tão sensacional apenas o desvia de sua busca para o saber interior. 

Ele não se põe em busca das pegadas de um rei-libertador ou de um de seus sucessores capaz de salvar a humanidade graças a sua herança sanguínea.

Com base na consciência recém-nascida, ele sabe que o futuro nascimento do filho real se realiza no próprio ser humano. 

As forças-luzes libertadoras atuam no sangue de todos os que a ela são receptivos. 

Esse é o passaporte obrigatório, e não a predestinação pela nobreza do sangue herdado de uma família ilustre, supostamente a do Graal.

Nesse processo, os criminosos que aparecem nos romances em questão representam os adversários no próprio ser. 

São forças opostas que intervêm a fim de impedir qualquer elevação espiritual, qualquer ligação com as forças superiores, qualquer renascimento na Luz. 

A nova orientação da alma representa a própria taça do Graal na qual o alimento espiritual puro é recebido.

Essa é a verdadeira sabedoria oculta. 

Ela não se encontra em parte alguma senão nas profundezas do próprio coração. 

Não se trata, portanto, de um manuscrito amarelado retirado de uma cripta subterrânea nem de um tesouro escondido no altar de uma antiga igreja. 

Quando o coração se torna receptivo à sabedoria que não está fora de
nós, porém em nosso interior, os véus que pendem diante do coração são afastados. 

Ao buscador simplesmente curioso ela permanece inacessível e velada, como aos fariseus que possuem a chave do reino de Deus, mas não se servem dela nem a dão aos outros (Evangelho Gnóstico de Tomé). 

Quem permanece silencioso interiormente será encontrado pela verdade e encontrará a verdade. 

E a verdade, a sabedoria oculta, lhe retirará os véus dos olhos, abrirá sua vista e se manifestará a ele, nua e sem rodeios. 

“Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que ocultaste estas
coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11:25).

Após tal revelação, o verdadeiro buscador do Graal vende ao primeiro alfarrabista todos os seus romances adornados com explorações imaginárias, pois eles já não são necessários.

Ele descobriu e compreendeu a mensagem velada, e passa a escrever a história de sua própria vida: a total entrega de seu ser interior ao novo homem, que é o prólogo e o fim, passado e futuro, o verdadeiro
personagem central desse verdadeiro thriller que ele está agora em vias de viver. 

Ele é o vencedor no combate que conduz pessoalmente entre o bem e o mal, entre a Luz e as trevas. 

É ele que nos faz fechar definitivamente as páginas da antiga existência e abre o livro da nova vida. 

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