terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O CAMINHO DA SERPENTE





Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...].

Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.

E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora.

Fernando Pessoa

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Fernando Pessoa





Porque choras de que existe

A terra e o que a terra tem?

Tudo nosso – mal ou bem –

É fictício e só persiste

Porque a alma aqui é ninguém.

Não chores! Tudo é o nada

Onde os astros luzes são.

Tudo é lei e confusão.

Toma este mundo por strada

E vai como os santos vão.

Levantado de onde lavra

O inferno em que somos réus

Sob o silêncio dos céus,

Encontrarás a Palavra,

O Nome interno de Deus.

E, além da dupla unidade

Do que em dois sexos mistura

A ventura e a desventura,

O sonho e a realidade,

Serás quem já não procura.

Porque, limpo do Universo,

Em Christo nosso Senhor,

Por sua verdade e amor,

Reunirás o disperso

E a Cruz abrirá em Flor.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Rumi – [Sama]


Sama
Vem, vem, tu que és a alma
da alma da alma do giro!
Vem, cipreste mais alto
do jardim florido do giro.
Vem, não houve nem haverá
jamais alguém como tu.
Vem e faz de teus olhos
o olho desejante do giro.
Vem, a fonte do sol se esconde
sob o manto da tua sombra.
És dono de mil Vênus
nos céus desse remoinho.
O giro canta tuas glórias
em mil línguas eloqüentes.
Tento traduzir em palavras
o que se sente no giro.
Quando entras nessa dança,
abandonas os dois mundos;
é fora deles que se encontra
o universo infinito do giro.
Muito alto, distante se vê
o teto da sétima esfera,
mas muito além é que encontras
a escada que leva ao giro.
O que quer que exista, só existe no giro;
quando danças, ele sustenta teus pés.
Vem, que este giro te pertence
e tu pertences ao giro.
O que faço quando vem o amor
e se agarra ao meu pescoço?
Seguro-o, aperto-o contra o peito
e arrasto-o para o giro!
E quando as asas das mariposas
abrem-se ao brilho do sol
todos caem na dança, na dança
e jamais se cansam do giro!
Obs: Muito provável que o “giro” se refira à dança que Rumi inventou que simula o movimento dos planetas no sistema solar.

ELE SEMPRE SABE:



HAKIM SANAI – Escritor, poeta e filósofo sufi – 1044-1150.


ELE SEMPRE SABE:
Ele conhece previamente teu mais íntimo pensamento. Ele percebe o que as suas criaturas necessitam antes mesmo que tenham concebido seu desejo.
Ele sabe do passo de uma formiga sobre uma pedra na escuridão.
Ele sempre sabe o que se passa na mente dos homens: farias melhor se refletisses sobre isso.
Se ages mal, há duas maneiras de encará-lo: ou pensas que Ele não o sabes, – e me espanto com a tua falta de fé ou então pensas que Ele sabe, ainda assim persistes, – e me espanto tua vil impertinência.
Podes ser verdade que nenhum homem conheça teus segredos; mas Deus os conhece; Ele não  é menos que um homem; certamente isto significa que ele conhece teu coração?
Então te afasta deste malfeito, para que em teu último dia não te afogues no mar de tua própria vergonha.
Fonte: O Jardim Amuralhado da Verdade – Hakim Sanai – Edições Dervish.

Abdullah Ansari, outro grandioso místico sufi.(1006-1088) Falando do Amor e União com o Amado Deus, ou da Caaba do Coração, como ele chama.




”Mesmo uma prisão
Irradia felicidade
Se o amor por Ti
Enche o coração.
Abençoada é a escravidão
Que Teu serviço compele,
Teus servos são felizes
Em suas servidões.
Há duas Caabas
A Caaba construída na terra
E a Caaba do coração.
A primeira é aquela que os pés
Dos peregrinos freqüentam;
A outra é o local secreto
Que os Buscadores da Verdade descobrem.
É a primeira
Que enche os olhos dos fiéis;
A outra, apenas o devoto encontra
Sob o olhar de Deus mesmo.
A peregrinação à Caaba terrestre
É uma questão de disciplina formal;
A descoberta da Caaba do coração,
Depende da graça de Deus.
Numa, os peregrinos bebem do poço do Zam-Zam;
A outra abre suas fontes
Ao manar dos suspiros.
A Caaba terrestre
É guardada pela montanha Irfat,
O templo do coração
É radiante com a luz de Deus.
Da Caaba terrestre
ídolos de pedra foram removidos;
Da Caaba do coração
A voracidade e o desejo são destronados.”

As Invocações de Abdullah Ansari
Editora Dervish

Nossa canção Vitoriosa!



Nesse dia final,
quando me ponham a mortalha,
não penseis que minha alma
permanecerá neste mundo.
Não chores por mim, gritando:
“Que tragédia, que tragédia!”
Cairias assim nas armadilhas
de um enganoso espelhismo.
Essa seria a verdadeira tragédia!
Quando vires meu corpo inanimado passar,
não griteis: “Se foi!, se foi!”,
pois será meu momento de união,
de aceitar o abraço eterno do Amado.
Quando me introduzirem na cova,
não me digais: “Adeus, adeus!”
A tumba é apenas um véu
que oculta o esplendor do Paraíso.
Pensa na aurora se houveres visto o ocaso.
Que dano fez pôr-se à Lua ou ao Sol?
O que é crepúsculo a vossos olhos
É alvorada para mim.
O que é para vocês uma prisão
É para minha alma um infinito jardim.
Crescerá toda semente no solo enterrada.
Haveria de ser diferente à semente humana?
Sai cheio cada balde que desce ao poço.
Deveria queixar-se me em vez de água
Retiro o próprio José (a beleza)?
Não busqueis aqui as palavras,
Busca-as em outro lugar.
Canta para mim no silêncio do coração
E me erguerei da terra para ouvir
Vossa vitoriosa canção.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Se



Se, ao final desta existência,
Alguma ansiedade me restar
E conseguir me perturbar;
Se eu me debater aflito
No conflito, na discórdia...
Se ainda ocultar verdades
Para ocultar-me,
Para ofuscar-me com fantasias por mim criadas...
Se restar abatimento e revolta
Pelo que não consegui
Possuir, fazer, dizer e mesmo ser...
Se eu retiver um pouco mais
Do pouco que é necessário
E persistir indiferente ao grande pranto do mundo...
Se algum ressentimento,
Algum ferimento
Impedir-me do imenso alívio
Que é o irrestritamente perdoar,
E, mais ainda,
Se ainda não souber sinceramente orar
Por quem me agrediu e injustiçou...
Se continuar a mediocremente
Denunciar o cisco no olho do outro
Sem conseguir vencer a treva e a trave
Em meu próprio...
Se seguir protestando
Reclamando, contestando,
Exigindo que o mundo mude
Sem qualquer esforço para mudar eu...
Se, indigente da incondicional alegria interior,
Em queixas, ais e lamúrias,
Persistir e buscar consolo, conforto, simpatia
Para a minha ainda imperiosa angústia...
Se, ainda incapaz para a beatitude das almas santas,
Precisar dos prazeres medíocres que o mundo vende...
Se insistir ainda que o mundo silencie
Para que possa embeber-me de silêncio,
Sem saber realizá-lo em mim...
Se minha fortaleza e segurança
São ainda construídas com os materiais
Grosseiros e frágeis
Que o mundo empresta,
E eu neles ainda acredito...
Se, imprudente e cegamente,
Continuar desejando
Adquirir,
Multiplicar,
E reter Valores, coisas, pessoas, posições, ideologias,
Na ânsia de ser feliz...
Se, ainda presa do grande embuste,
Insistir e persistir iludido
Com a importância que me dou...
Se, ao fim de meus dias,
Continuar
Sem escutar, sem entender, sem atender,
Sem realizar o Cristo, que,
Dentro de mim,
Eu Sou,

Terei me perdido na multidão abortada
Dos perdulários dos divinos talentos,
Os talentos que a Vida
A todos confia,
E serei um fraco a mais,
Um traidor da própria vida,
Da Vida que investe em mim,
Que de mim espera
E que se vê frustrada
Diante de meu fim.

Se tudo isto acontecer
Terei parasitado a Vida
E inutilmente ocupado
O tempo
E o espaço
De Deus.

Terei meramente sido vencido
Pelo fim,
Sem ter atingido a Meta.


Hermógenes

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011






"Todo este mundo quotidiano e visível, toda esta gente que boia à superfície da vida, todas estas coisas que constituem os nomes e os feitos da história não são mais que erro e ilusão. Somos todos, não agentes, senão agidos-títeres de maiores que nós. Todo o nosso orgulho de conscientes e a nossa soberba de racionais são o títere que se orgulha de seus gestos. Na verdade o combate é aqui, mas não é nosso; não é connosco, somos nós. Não somos actores de um drama: somos o próprio drama - a antestreia, os gestos, os cenários. Nada se passa connosco: nós é que somos o que se passa."

Fernando Pessoa